sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

HISTÓRIAS DO CEMITÉRIO DO CATUMBI PARTE 3 (de 13) por Francisco Souto Neto.

HISTÓRIAS DO CEMITÉRIO DO CATUMBI
PARTE 3 (de 13)

Francisco Souto Neto

A obra biográfica Visconde de Souto: Ascensão e “Quebra no Rio de Janeiro Imperial”, escrita em coautoria por mim e minha prima Lúcia Helena Souto Martini, conta com um APÊNDICE em sua parte final, da página 457 à 510, subintitulado O Cemitério do Catumbi, no qual faço o relato do que foi a minha luta desde o ano de 1969 – há quase meio século –  pela preservação do setor histórico da referida necrópole do Rio de Janeiro, onde estão sepultados os mais importantes vultos históricos do Brasil Imperial.
O Apêndice conta com 13 capítulos. Este é o 3º capítulo do Apêndice.


APÊNDICE

O CEMITÉRIO DO CATUMBI:
DEPOIMENTO DE FRANCISCO SOUTO NETO


3

JANEIRO DE 1985 – O CEMITÉRIO DO CATUMBI VANDALIZADO


Passaram-se dezesseis anos até que eu retornasse ao Rio de Janeiro. No primeiro mês de 1985 dirigi-me ao Cemitério do Catumbi para visitar os túmulos dos meus trisavós. Desta vez sofri grande choque com o que lá encontrei. Não tanto pela favelização expandida no entorno do cemitério1, mas pelo estado de abandono em que se encontrava o setor histórico da necrópole, com um matagal que chegava a uns dois metros de altura. Para alcançar os túmulos, fui derrubando o mato com as mãos nuas e pisando-o para poder avançar.
Quando Clarival do Prado Valladares pesquisou aquela necrópole entre os anos 60 e 70, já se deparara com o início da decadência do lugar, tendo então registrado:
Nenhuma necrópole brasileira dispõe, em seus registros, de lista tão numerosa de titulares, espalhados em simples sepulturas de lajes fendidas, abandonadas ou em pomposos mausoléus de mármore, exibindo pujança de riqueza e brasões sobre o pórtico. (VALLADARES, 1972, v. 2, p. 893).
Prado Valladares não poderia sequer imaginar, entretanto, que vinte anos após a publicação do seu livro o setor histórico estaria depredado e quase desaparecido em meio a um matagal.
A capela do túmulo do visconde de Souto tinha perdido mais uma parede lateral. O pior é que faltava agora um terço da campa de mármore do sepulcro. Olhando através do buraco, vi que ali dentro tinham sido colocados vários sacos de lixo, de plástico, semi-abertos, contendo crânios e outros ossos humanos.
Escandalizado, dirigi-me à administração do cemitério, avisando-a de que eu tomaria diversas providências, dentre as quais um contato imediato com a Venerável Ordem, com a imprensa carioca, com a Cúria Metropolitana e, se necessário, com o prefeito da cidade do Rio de Janeiro e com o governador do Estado.


Há 16 anos sem ir ao Cemitério do Catumbi, Souto Neto em viagem ao Rio de Janeiro tem a desagradável surpresa de encontrar o túmulo do seu trisavô, o Visconde de Souto, envolto em matagal, os mármores quebrados, pondo em risco a integridade física do jazigo.

 
O setor 1 do cemitério (o mais antigo) envolto em mato. No setor 2, o túmulo do Duque de Caxias cheio de fraturas entre outros túmulos arrebentados e deteriorados.

 
À esquerda o túmulo do Duque de Caxias e à direita o da Duquesa de Caxias, ambos estragados.

 
Os nobres do império eram quase sempre sepultados em jazigos perpétuos, individuais, sem aspecto monumental. O túmulo da Viscondessa de Souto, acima, com sua delicada capela, apesar de estar com o mármore enegrecido não sofreu danos tão marcantes quanto os outros.

 
Quando os restos mortais de Duque de Caixas (e da Duquesa) foram exumados e trasladados do Cemitério do Catumbi para o Panteão da Pátria, a foto acima mostra o impecável estado da campa.

 
À esquerda, o túmulo do Duque de Caxias aberto. À direita, o crânio do Duque de Caxias sendo examinado; de frente, um neto do Duque.

Soube de que a Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula estava sob intervenção2 da Arquidiocese e que por ela respondia o Monsenhor Abílio Ferreira da Nova. Dirigi-me à Ordem, mas referido monsenhor encontrava-se ausente.
Como eu teria compromissos de trabalho inadiáveis em Curitiba, retornei para casa, mas no mesmo dia escrevi a seguinte carta ao senhor interventor:
Curitiba, 25 de fevereiro de 1985. / Ilustríssimo Senhor / Monsenhor Abílio Ferreira da Nova, / DD. Interventor da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. / Largo de São Francisco, s/n.º - Igreja. / Rio de Janeiro, RJ / Senhor Interventor. / O topo da colina do Cemitério do Catumbi, nessa Capital, abriga, desde o Século XIX, as sepulturas dos homens que construíram a História deste País. Estão lá os jazigos de senadores do Império, generais, barões, viscondes e condes, e de outros notáveis vultos, como os do duque de Caxias e de Teófilo Otoni. / Tenho ancestrais e parentes sepultados no Catumbi. [...] Em fins dos anos 60, preocupado ante aquilo que, na época, se me afigurava o quadro de um cemitério em crescente abandono, muni-me de farta documentação e, viajando ao Rio de Janeiro em 1969, fui recepcionado nessa Venerável Ordem, pelo então Provedor (ou Corretor) o Dr. Vicente Noronha, e sua secretaria, a Sr.ª Hiluz del Priori, ocasião em que se produziu o documento cuja cópia estou juntando (anexo n.º 1), através do qual, uma vez comprovada minha ascendência em linhagem direta do visconde de Souto, foi reconhecido pela Venerável Ordem o meu direito à guarda de três jazigos. Naquela oportunidade, afiançou-me o Dr. Noronha que, dada a indiscutível importância para a História do Brasil, das famílias ali sepultadas, os setores nobres do Cemitério do Catumbi (setores 1 e 2) seriam totalmente restaurados, e que os mesmos seriam, em seguida, tombados pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. / Desde então, nunca mais voltei ao Rio, exceto quando em trânsito, pelo Aeroporto do Galeão, para o Exterior. Recentemente, em janeiro deste ano, retornei a essa capital, [...] oportunidade em que estive no Cemitério do Catumbi, para levar flores à memória dos meus ancestrais. / Após galgar as escadas e ganhar o topo da colina, fui tomado da mais absoluta indignação ao encontrar o setor nobre do cemitério envolto em denso matagal de quase dois metros de altura. Com dificuldade, localizei o túmulo do visconde de Souto, graças à cúpula da sua capela, emergindo em meio à vegetação. Para chegar ao túmulo, tive que derrubar mato cerrado, vendo, pelo caminho, as sepulturas dos nossos vultos históricos violadas e as lápides quebradas, enquanto, horrorizado, observava pelos vãos dos mármores fragmentados, cacos de garrafas misturando-se ao mato que cresce do interior dessas tumbas. Ao alcançar a sepultura do meu trisavô encontrei, assombrado, o mármore da campa rompido e, dentro do jazigo, diversos sacos plásticos de lixo contendo restos mortais, isto é, ossadas humanas: colunas vertebrais, costelas, crânios. Como o matagal fosse muito denso no setor 1, e completamente cerrado, isto significa que tais sacos lá foram colocados e esquecidos há mais do que apenas alguns meses; quiçá, há muitos anos. / País de memória curta! Um povo não pode se arrostar ao direito de um futuro, se não aprender, antes, a respeitar a memória dos seus mortos! É inadmissível que numa cidade de tão forte passado cultural, cemitérios deixem profanar a memória dos seus vultos históricos, fragmentando-lhes as lápides e atulhando-lhes os jazigos com lixo e desdém! Na morte, todos se igualam: aqueles cujos restos mortais foram atirados no interior do túmulo do visconde de Souto, merecem igual reverência e respeito, e um local decente e identificado onde possam repousar para sempre! [...] / O visconde de Souto [...] cujo túmulo hoje se deteriora num matagal carioca – o que é absolutamente injusto, considerando-se, segundo documentos, que o valor pago ao cemitério pelos filhos do visconde e viscondessa (sem levar em conta suas significativas e constantes doações à instituição dos seus irmãos da Venerável Ordem Terceira), asseguram-lhes o direito a um status de dignidade e de decência por toda Eternidade (tanto que seus descendentes estão legalmente isentos de contribuições a esse Cemitério, já que o preço, “ad eternum” alto e justo, já foi pago há mais de um século). Portanto, a manutenção da dignidade do Cemitério São Francisco de Paula não cabe aos remotos herdeiros dos ali sepultados, mas exclusivamente à administração do mesmo. / Desci dos setores 1 e 2 e fui diretamente à administração do Catumbi, onde atendeu-me o Sr. Lopes. [...] Pedi-lhe providências imediatas, informando-o de que eu tomaria diversas atitudes, incluindo o contato com V.S.ª e, possivelmente, com a imprensa carioca. / As providências prometidas pelo Sr. Lopes compreendem: a) – limpeza das áreas, não apenas contíguas aos túmulos já referidos, mas de todo o setor 1 e o setor 2; b) – retirada dos sacos de plástico do interior do túmulo do visconde, identificando e dando destino cristão àqueles restos mortais; às expensas do próprio cemitério3, restauração do tampo de mármore quebrado e reforço das duas paredes da capela que ameaça ruir [...]; d) – manutenção das áreas do cemitério limpas, como o requerem os estatutos da Venerável Ordem, e como ordenam o civismo e a boa moral cristã. Estou, aqui, desconsiderando a ausência da cruz e da agulha de coroamento no alto da capela (a exemplo das que ainda subsistem no jazigo da viscondessa) e das floreiras. E também dos bustos, estes igualmente em mármore, do visconde e viscondessa de Souto, que existiam, respectivamente, nas duas capelas e que, certamente, foram furtados por vândalos ou por inescrupulosos colecionadores de objetos de arte. / As fotografias anexas, do Cemitério do Catumbi, tiradas por mim na mesma ocasião, mostram: a) – a capela do túmulo do visconde, como ponto de referência; b) – o único caminho, pelo lado superior, que consegue conduzir ao túmulo, com o matagal já parcialmente derrubado por mim; c) – a capela do túmulo do visconde, sem duas paredes laterais, emergindo, frágil, em meio ao matagal; d) – a campa quebrada, deixando entrever os sacos de plástico contendo ossadas humanas (a foto foi feita sem flash); note-se a frisa retangular de mármore, na base da lápide, partida ao meio e empurrada para dentro, para alargar o espaço aberto, de modo a permitir a entrada dos sacos de plástico, ali colocados por funcionários do Cemitério do Catumbi; e) – o túmulo do duque de Caxias, com os adornos quebrados e começando a rodear-se de mato; o da duquesa de Caxias está em pior estado; f) – o setor 2, onde está o túmulo da viscondessa de Souto, que aparece nesta foto (distante uns 5 metros, apenas, do túmulo do duque de Caxias), encontra-se em melhor estado; aqui, restam algumas floreiras, e a capela ostenta ainda a cruz com a agulha de coroamento; o túmulo do visconde era idêntico a este; g) – à entrada do setor 2, no acesso aos túmulos da viscondessa de Souto e do duque e duquesa de Caxias, encontrei esta pilha de caixões mortuários usados, ainda com restos das roupas de cadáveres exumados! / Enviarei cópias desta ao Sr. Lopes, administrador do cemitério, a Sua Eminência o Cardeal Dom Eugênio Salles, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a órgãos da imprensa. / Estou certo de que V.S.ª desconhece o estado lamentável de abandono e desleixo em que se encontra a parte mais nobre do tradicional cemitério do Catumbi; convido-o, pois, a verificar, “in loco”, tal fato que é de comoção nacional e que depõe contra essa respeitabilíssima Venerável Ordem, já que a ela compete bem administrar esta parcela da Memória Nacional, e envolve a Cúria Metropolitana, porque a Venerável Ordem se encontra sob intervenção da Arquidiocese. / Certo de poder contar com a compreensão de V.S.ª, na expectativa do seu breve pronunciamento, e na esperança de poder, muito logo, encontrá-lo pessoalmente nessa capital, e ao Cardeal Dom Eugênio Salles, para agradecer-lhes pelas providências tomadas, subscrevo-me com protestos de consideração e apreço. / De Vossa Senhoria / Atenciosamente / Francisco Souto Neto. (SOUTO NETO, F. Carta para Abílio Ferreira da Nova. Curitiba, 25 fev. 1985. 3 f.).
_______________________

NOTAS A APÊNDICE
1 Ao redor do Cemitério do Catumbi, e na sequência da Rua Itapiru, que começa no Largo do Catumbi e que é a entrada da necrópole, localizam-se seis enormes favelas. A que está exatamente atrás do cemitério é a Mineira (também chamada “da” Mineira). As demais são as do: Morro de São Carlos, Rato, Morro do Catumbi, Morro Santos Rodrigues, Morro Azevedo Lima.
2 Os problemas da Venerável Ordem agravaram-se, e foi publicado pelos jornais do Rio de Janeiro que a entidade, para pagar dívidas, estava vendendo o seu precioso patrimônio artístico, que ia das obras de arte a antigos e valiosos móveis.
3 Entretanto, o próprio Francisco Souto Neto ao retornar ao Rio do mesmo ano, assumiu as despesas pelos danos causados ao túmulo.

-o-

CONTINUA NA PARTE 4

Nenhum comentário:

Postar um comentário